“Este aqui é o nosso banheiro”, já foi logo mostrando o Marquinhos tão logo cheguei à minha morada de três semanas. “É o lugar mais quente da casa. Pode dormir aqui se quiser. Aqui ao lado está o ambiente com a pia e o chuveiro. Pois é, ficam em cômodos separados, mas é um do lado do outro…” Ironias a parte, realmente o banheiro era muito quentinho, pois o ambiente era minúsculo e o aquecedor ocupava um espaço considerável.
Eu, atordoado, mal conseguia ensaiar as direções da bússola. Após estrear o banheiro, tentei abrir a porta, mas algo não funcionava. Senti um frio inesperado que invadiu dos quadris para cima. De fato, eu abrira uma janela que de tão grande que era parecia porta. Por pouco não cometi o primeiro suicídio involuntário da história. Brincadeiras a parte, os primeiros dias de Friburgo foram intensos e desafiadores, dada a necessidade de entender o ambiente interno e externo que me circundavam. Entender o interno era mais premente.
No segundo dia, já entendi que, seguindo direto da porta de entrada, havia uma escada e, ao seu final, um corredor que resolvia minha vida. Ao longo desse corredor, encontrava o quarto à direita e o banheiro à esquerda. Ou os dois banheiros, para ser mais preciso.
Passado mais um pouco de tempo, essa percepção deixou de ser racional e se tornou intuitiva. Consegui transitar por aquele espaço físico e mental com boa desenvoltura e sem maiores raciocínios. Uma escada, um corredor; à direita do corredor está o quarto. À esquerda do quarto, na ótica de quem sai, está a escada. Tão certo e tão lógico. À frente do quarto, um pouco mais para a direita, havia a porta que dava para o banheiro.
Eis que certa noite resolvi levar o Brami para um passeio antes de dormir. Não era a primeira vez que tomava tal iniciativa, embora ela tenha sido rara ao longo da viagem. Na prática, ele fez seus passeios noturnos enquanto nós voltávamos para casa de algum lugar qualquer. Juntava-se o útil ao agradável.
Mas naquela noite, como em outras também, voltamos mais cedo e decidi sair com o Brami. Saí do quarto com a coleira em punho, mas passei no banheiro antes de começar a saga. Saindo do banheiro, chamei o Brami para colocar a coleira, mas ele se limitou a fazer hora com a minha cara, como em muitas ocasiões. “Brami!!!”
Nem barulho. Será que ele desceu para revirar o lixo?
Foi meu pensamento inevitável, pois não teria sido a primeira vez. Procurei então chegar à escada, que fica à esquerda do quarto e à direita do banheiro. Mas à direita do banheiro fui dar em um outro quarto ou algo parecido. Cadê a escada? Voltei por onde vim, olhei para o lado.
Havia uma parede com algo dependurado. Logo em adiante, a porta do meu quarto. Entrei no quarto e articulei a pergunta mais esquisita que já ousei fazer até hoje em minha vida: “Marquinhos, a escada não fica à esquerda de quem sai do quarto?” Ele confirmou com uma voz preguiçosa, de quem já está quase no décimo sono, mas que nem por isso deixou de mostrar perplexidade. Achei melhor não insistir com o assunto, antes que meu companheiro de viagem se convencesse de que eu pirei de vez. Saí do quarto; voltei facilmente ao banheiro.
Refiz a estrada e caí no mesmo vão. E o Brami? Na certa está se fartando com o lixo. Volto a chamar com intensidade. Nessas alturas já não entendia mais nada. Não havia mais direita nem esquerda, nem quarto nem banheiro. Meu corpo era a medida de todos os espaços e já não conseguia encontrar sua própria medida. Espalmei as mãos, estiquei os braços para um lado e para o outro, na tentativa de sempre manter contato com algo sólido que não fosse eu. As pernas se esmeravam para percorrer todo aquele ambiente que, naquelas alturas, eu já desconhecia por completo. É como se fosse necessário preencher todos os espaços simultaneamente para que eu pudesse ali me sentir.
E foi nesse afã de me medir com as paredes que descobri que algumas delas se movem! Havia, na verdade, uma porta a divisar a escada e o corredor. Uma porta meio sem critério, é verdade, insolitamente com coisas dependuradas, também é verdade, mas que estava ali e pela primeira vez eu a vira fechada. Para completar minha alegria, pouco antes de descobrir a porta, surge o Brami do fundo do corredor. Ele simplesmente ficou lá, assistindo ao dono sem esboçar nenhuma reação. Enfim, já não se fazem cães-guia como antigamente!
Descobrir aquela porta foi uma experiência quase mística, que trouxe um alívio inestimável. Por um minuto achei que poderia estar louco. Por um minuto percebi quanto pode ser frágil o equilíbrio de nossos esquemas mentais. Em um minuto percebi como os grandes desesperos podem derivar das pequenas coisas. Mas foi também em um minuto que percebi como as paredes podem transformar-se em portas.
Em suma, minha viagem vem sendo um constante transformar paredes em portas.
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Prezados amigos,
Como muitos já sabem, encontro-me no final de uma aventura de três semanas em Freiburg, uma charmosa cidade no sul da Alemanha, quase divisa com a Suíça.
Foram três semanas de autêntica vida estudantil, vivendo em uma espécie de república bastante exótica.
Não ando com muito tempo para escrever detalhes, mas estou fazendo notas que hão de virar um texto decente no futuro. Por ora, mando apenas um relato para atiçar a curiosidade de todos.
Um grande abraço gelado, Leo