Nove de outubro do ano dois mil; dezesseis de junho de dois mil e oito.
Duas datas separadas por quase oito anos e muitas histórias. Em comum entre elas, há bem mais que a coincidência do dia da semana.
Aliás, não é casual que as duas tenham caído numa segunda-feira. Ao amanhecer daquelas duas datas, encontrava-me em viagem e rumo ao mesmo destino e com uma missão comum: receber um cão-guia.
As semelhanças terminam aqui, embora o paralelo constante seja inevitável. A viagem de agora está sendo o avesso da viagem de outrora. Recebo um cão que é o avesso do que eu tinha e eu mesmo me tornei, ao longo dos anos, algo como o avesso do que fui. Não que eu seja hoje pior ou melhor do que eu era; nem o novo cão é menos guia, nem menos admirável. Lella e Brámi, pastora e labrador, fêmea e macho. Diferenças marcantes e suficientes para demonstrar que um dia nunca será igual ao outro em nossa vida. Isso deveria ser óbvio, mas não é tanto assim.
Minha viagem começou mais cedo desta vez, pois me encontrava mais distante. Não me bastou pegar um trem em Roma e lá permanecer intermináveis cinco horas, destilando o sono da noite mal-dormida pela tensão. Esta viagem durou bem umas dezesseis horas, mas, se pouco descansei, deve-se isso ao fuso horário e não à tensão. Assisti a alguns filmes durante o vôo, ouvi música, comi.
Tensas mesmo deveriam estar duas menores que viajavam desacompanhadas, coitadas. Ou talvez pela santa inocência nem lhes tenha vindo a tensão. Fato foi que desembarcamos juntos, pois a funcionária da assistência especial acompanha todos os assistidos de uma vez só. Eis que, chegando à polícia de fronteira, a situação complicou para as menores.
A pequenina de sete anos ia visitar o pai e a madrasta, mas a polícia detectou que o pai vem residindo ilegalmente em Portugal. A outra, de quinze anos, disse que ia visitar a madrinha mas não conseguiu convencer ao policial, que a interpelou asperamente.
Dei graças a Deus te estar com meu passaporte italiano de prontidão. Basta a exibição para calar qualquer pergunta.
Permaneci um tempo ali, em pé, observando aquela procissão de passageiros e passageiras do meu vôo que se explicavam à polícia de imigração. Não permaneci ali a tempo para saber do desfecho da história das meninas. A julgar a política européia atual, ambas devem ter sido deportadas, sendo que a menor deve ter sido utilizada como isca para deportar o pai também. mas isto são apenas conjecturas.
Meu vôo de conexão saiu atrasado mas recuperou o tempo perdido durante o cruzeiro. Por volta de meio dia, embarquei no ônibus rumo à estação central de Milão, onde me encontraria com o instrutor da Lella e do novo cão. Por obra do destino, acabou sendo a mesma pessoa. Uma hora da tarde, lá estava eu, puxando duas malas, uma em cada mão… uma cena insólita até para mim.
Assim que me viu, o instrutor foi logo exclamando que eu não mudei nada. Também tive a impressão que Corrado (assim se chama o instrutor) não tinha mudado. Teve uma filha, que já tem quatro anos, separou-se, mas tudo parece igual, ou quase tudo.
A escola mudou muito. O alojamento improvisado foi transformado numa pequena casa com bom acabamento e quatro suites. Nesta semana só a minha esteve ocupada. Para grande alegria de meu padrasto, nosso digníssimo alojamento era dotado de uma cozinha equipada e uma TV de cristal líquido de 46”.
A escola é grande: tem 25.000 m2 de área e se situa em Limbiate, uma cidadezinha que, embora diste apenas dez quilômetros de Milão, conserva certo estilo de cidade interiorana. O portão de saída dá acesso a uma rua que é a prova de fogo dos cães-guia: uma estrada de alta velocidade sem passeio. É o lugar ideal para treinar os comandos rechtsweg e linksweg (mantenha à direita e à esquerda), que serve para quando se precisa andar em acostamentos. Andando cinco minutos a pé, chega-se a uma grande loja do Carrefour, que não deixa muito a desejar em tamanho às lojas que temos no Brasil. Mas aqui o principal diferencial para mim era a portentosa prateleira de vinhos e as bancadas com saborosíssimos queijos e salames. Junte-se a isso o fato de meu padrasto adorar cozinhar e eu deixo a cargo do leitor imaginar o resto.
O treinamento dos cães continuava o mesmo de oito anos atrás: antes mesmo de entrar para a escola, o cão já deve aprender sua primeira matéria do currículo: socialização. Isso basicamente consiste em ser um bom animal de estimação quando não estiver trabalhando, inclusive naqueles lugares que os bons animais de estimação não costumam ter permissão para freqüentar, como cinemas e teatros.
Esse trabalho normalmente é feito por famílias hospedeiras conhecidas internacionalmente como puppy walkers. Depois dão voz de prisão ao cão, sem que ele tenha cometido crime algum. Acreditem se quiser há pessoas que pensam assim.
A entrada da escola está equipada com várias câmeras de filmar por conta de algumas ameaças que receberam da associação protetora dos animais de lá. Disseram que iriam liberar todos os cães pois era um absurdo o que faziam com eles. Mas a prisão do cão é temporária e eles deveriam levar isso em consideração.
Brincadeiras à parte, em torno de um ano de idade, o cão é transferido para o canil e lá viverá sem dono. Acaba a brincadeira inútil e começa a aprendizagem da profissão, sempre através de brincadeiras. A primeira fase do treinamento propriamente dito é a obediência: aprender a sentar, a deitar e a comportar-se quando anda na coleira. A segunda fase é a aprendizagem da arte de guiar: caminhar com cuidado e desviar dos obstáculos. A última fase refina o aprendizado da anterior, procurando fazer o cão reconhecer alguns obstáculos corriqueiros da vida cotidiana, como os degraus, as faixas de pedestre, as direções, etc.
É óbvio que as coisas na prática não funcionam tão bem como na teoria. Há vários comandos de guia que, na minha opinião e na de muitos usuários, são absolutamente desconhecidos ou rapidamente desaprendidos pelos cães. O comando Panca, por ex., serve para o cão procurar um lugar para o dono sentar nos ônibus e metrôs. Mas quem vai conseguir um lugar para sentar com regularidade nos meios de transporte públicos de Roma ou do Brasil? Há sentido pedir para o cão procurar algo que não existe?
Em relação ao treinamento, há duas missões igualmente difíceis: a de treiná-los e a de mantê-los treinados. Disciplina e constância são fundamentais, especialmente no primeiro ano de convívio.
O primeiro encontro com Brámi foi bem diferente do com a Lella. Eu certamente estava mais tranqüilo e mais seguro, mas não foi só. Minha primeira guia, infelizmente, não teve o privilégio de ser socializada por uma família, coitada. Só agora fui descobrir essa triste notícia. Essa circunstância também ajuda a explicar muito da diferença. Ela, não tendo tido outro dono, era extremamente ligada ao treinador e literalmente só tinha olhos para ele.
Já o Brámi é experimentado nas separações da vida. Parecia entender que sua relação com o Corrado era apenas transitória e não teve nenhuma dificuldade em me aceitar. No mais, o labrador é um cão alegre por excelência. Já foi logo pulando em mim e no meu padrasto e hoje é capaz de fazer festa, sem pestanejar, a quantos o queiram cortejar.
Fui conhecê-lo na segunda-feira à tarde e ficamos juntos apenas uma hora. O treinador advertiu que ele tem gênio forte, e tem mesmo, e ficou com medo de como ele se comportaria comigo de noite, após um contato tão superficial. De fato, foi melhor levá-lo para o canil e começar o treinamento na manhã seguinte. Cedendo à pressão do cansaço, do vinho e do espaguete à matriciana, dormi nada menos que dez horas em seguida. Estava novo no dia seguinte.
Ajustar a guia com o Brámi foi até fácil, pois ele tem um passo bastante leve (mais do que o da Lellinha). O que não está sendo fácil é acostumar com o temperamento agitado dos labradores. Nas primeiras noites, tive que amarrá-lo ao pé da cama pela coleira para que ele entendesse que aquela não era hora de brincar. Depois que ele se acalma, vira um santo, mas quando cisma de querer brincar…
Os dias em Roma estão passando com certo sofrimento, pois o calor que faz nessa época é desumano e, assim, meus movimentos ficam muito limitados. Ontem a temperatura subiu de 38º para 40º. A taxa de umidade do ar está altíssima, a ponto que dá para soar dando uma volta com o cachorro pelo quarteirão por volta de duas da manhã. A adaptação caminha em bom ritmo mas é bastante desgastante. Adaptar-se com a guia de um cão é muito mais do que aprender ou aprimorar uma técnica, é entregar-se a um jogo de confiança e conhecimento recíprocos. Já começo a discernir, por exemplo, quando o Brámi quer brincar de quando ele deseja fazer alguma necessidade. Essa incompreensão já custou algumas necessidades indevidamente aliviadas em casa. Faz parte.
Já está chegando a hora de levá-lo para percursos de trabalho mais longos. Nos primeiros dias, é melhor não mantê-lo em guia por mais de uma hora para evitar stress. Já começo timidamente a soltá-lo para brincar. Digo timidamente porque ainda não posso confiar muito em sua obediência. Alguns dias atrás, saí com minha mãe e meu padrasto e soltamos um Brámi para brincarem um campo muito bonito. Ele foi tão longe que deu para perder de vista e não parecia estar tão preocupado em voltar. É impressionante a energia que ele tem para correr.
Nem parece o mesmo moço que trabalha com passos calmos.
Grande abraço a todos e até breve, Leo Coscarelli