OS GASTROCHATOS


Walcyr Carrasco

Sou guloso, não nego. Pesquiso receitas, descubro restaurantes. Gosto de comida de botequim bem feita e fujo de lugares onde a decoração é mais importante que a cozinha. Aprendi uma regra desde cedo: com peixes, vinho branco; com carnes, tinto. Mas regras existem para ser quebradas, na vida e no paladar. E por muito tempo deixei a intuição fazer a alegria de meu estômago.
Mas agora entrou em moda a harmonização. A escolha de um cardápio se tomou tão complexa quanto meu primeiro vestibular. 0 termo vem de harmonia. Segundo o dicionário Aurélio: “Conjunto ou sucessão de sons agradáveis ao ouvido; ciência da formação e encadeamento dos acordes.
Em gastronomia, significa conciliar bebidas com pratos. Na teoria, é lindo. Na pratica, uma chatice. Faz a alegria dos gastrochatos, que gostam de exibir dotes culinários. Esses tipos, tão em voga atualmente, gostam de falar difícil para mostrar que sabem mais.
Eis um comentário típico:
– Esse vinho mais encorpado, de notas vibrantes e muita personalidade, é ideal para acompanhar carnes com sabor intenso.
Deu para captar? É uma linguagem mais difícil de destrinchar que um peru de Natal! Eu me pergunto se a pessoa sabe o que esta falando. O que é realmente a personalidade de um vinho? Como resolver o dilema de um camarão, suave ou intenso, dependendo da receita? Fui a um jantar em um hotel em que, a cada prato, se servia um vinho diferente para, justamente, harmonizar. Lembro-me vagamente: fui carregado para meu apartamento.
No caso dos vinhos há uma tradição para combinar pratos e rótulos. Os enólogos conhecem o assunto. Mesmo sendo muito engraçados ao descrever vinhos de forma um tanto obscura. Antes de beber, fico torcendo o nariz em busca do tal “aroma levemente frutado” e depois estalo a língua a espera das “notas de cacau e madeira”. E aguardo o sabor “intenso e vibrante”: vou levar um choque e sair pulando? Quando recebo propaganda, penso: alguém acha que, se eu não entender, vai vender mais?
Mas e os azeites, chás e cafés? Não se pode mais escolher um bom extra-virgem para a salada. E preciso saber se combina, a origem, a característica… Já fui à degustação de azeites em que me fizeram provar uma colherinha de cada tipo. No final, se me dessem óleo diesel, não perceberia a diferença. Especialistas em chás insistem ate em harmonizá-Ios com meu estado de espírito. Ouvi o conselho de um especialista:
– A escolha do chá deve ser minuciosa, para pacificar sua alma ou despertar sua força interior…
Mais fácil bater na porta de um pai de santo!
E os cafés? Adoro tomar café desde garoto. Sempre fui feliz. Agora descobri que não passo de um ignorante. Tal como os vinhos, os tipos de café exigem conhecimentos enciclopédicos. Não são mais fortes ou fracos. Mas “aveludados”, “com notas de cereais”, “amadeirados”, “imensos”, “suaves” ou “persistentes”. Segundo a descrição dos vendedores, alguns “têm caráter”. Bem… Com tanta falta de gente com caráter, e bom saber que pelo menos o café tem!
Quando algum chato discorre sobre minúcias da harmonização, eu pergunto:
– E minha intuição, onde fica? E meu gosto pessoal?
Tudo bem: conciliar paladares tem seu valor. Mas não deve ser obrigação ou símbolo de status. Uma boa refeição é uma experiência de vida, que não pode ser reduzida a uma ciência exata de combinações de sabores. Para mim, a harmonização que conta é entre os amigos à mesa, onde a refeição e a bebida são parte do afeto que quero compartilhar.

Publicado em VEJA-SP em 23 de setembro de 2009

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